domingo, agosto 24, 2008

Quase ... quase!


Os dias prósperos não vêm acaso; são granjeados, como as searas,

com muita fadiga e com muitos intervalos de desalento.

(Camilo C. Branco)





Não importa o tamanho da montanha, ela não pode tapar o sol.

(Provérbio chinês)




Consciência da Não-Vida



Um olhar sobre um mar de inquietações e sonhos



"Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia liquida me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mundo.

Tardava o dia como a felicidade - áquela hora parecia que também indefinidamente. Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir. O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejou por debaixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia. de quando em quando, uma porta de escada. Ás vezes havia um chapinhar liquido de passos, um roçar por si mesmos de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacavam.

Depois, o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente. Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente.

Quanto á janela, eu só a ouvia. Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que ia sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passam a ter lugar e dor na minha desolação."

Paisagem da Chuva,
Bernando Soares, Livro do Desassossego

sábado, agosto 16, 2008

Scars



"The most authentic thing about us is our capacity to create, to overcome,

to endure, to transform, to love and to be greater than our suffering."


Ben Okri





"Out of suffering have emerged the strongest souls.

The most massive characters are seared with scars."

Khalil Gibran




terça-feira, agosto 05, 2008

Insónia





Lá fora existe um mundo inteiro que me espera ou não. Da janela sinto-me pequenina, eu diria minúscula. Vejo aos quadradinhos pequeninos, uma coisa de cada vez. Abro a janela e deixo que o vento me embale numa melodia saudável e harmoniosa. Apetece-me vida, apetece-me ir sem demora. Já se faz tarde. Mas ainda tenho que ficar, por pouco tempo mas tenho que ficar. Ouço vozes em tormento, vozes que soam simplesmente porque no silêncio a dor pesa mais do que partilhada. Preciso de ir e receio o que virá. Começar de novo, vezes sem conta. Conteúdos novos, custa! Mas não assusta. Estudar é-me essencial, aprender continuamente é-me instintivo e indispensável. Preciso de me sentir a evoluir, a desenhar um percurso mesmo que oculto. Da janela não vejo perspectivas, nem tridimensionalidade. Vejo o nada que é tudo. E está bem assim, a vida vai-se revelando aos poucos. A ansiedade que se revela... em determinado sentido trespassa-me insistentemente, insónia profunda que me tortura a cada acordar assustado. A dificuldade em acordar a cada dia que passa, o pesar dos dias. Vida onde andas? Porque demoras? Quem disse que és o principal responsável pelos teus passos, disse a verdade. Só que se esqueceu de acrescentar que determinados acontecimentos não se anunciam, nem batem à porta. Simplesmente existem ou não. E eu quero partir e encontrar porto seguro, quero que existas!