Há um brusco agitar e o roçar de algo que escorrega brandamente, lubrificado por águas espessas. Há um urgente impulso para a frente, uma viragem na postura. Há um tacto desconcertado, a passagem de uma fronteira elástica, uma comichão dolorosa, uma luz que fere, uma agitação desconhecida e rítmica, algo que abre caminho desde dentro, um grito. O espaço ondulou amorosamente. Muito tempo depois eu soube que tinha sido embalado. Na altura não sabia nada porque ainda não havia ninguém que pudesse saber. Eu cheguei depois, quando essa consciência colada às sensações se foi tornando independente, distanciando-se das impressões, que começavam a ser coisas. Grandes ritmos organizavam tudo: o desassossego e a calma, a vigília e o sono. Por fim apareceram os rostos, as palavras, o divertido som de um guizo, as canções de embalar, os beijos, os sorrisos, tão divertidos de imitar, e também o EU, o meu eu, como o centro da paisagem. Cheguei a reconhecer-me num espelho. Primeiro havia estados agradáveis ou incómodos, depois houve visões que atraíam ou aborreciam, depois vi objectos, por fim vi-me a ver objectos: tinha reflectido.
in Aprender a viver by José António Marino (2007)