domingo, junho 08, 2008

Se te aprendessem minhas mãos...






"Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento

na cevada pura, de ti viriam cheias

minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses

em minha espuma,

que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?

No entanto és tu que te moverás na matéria

da minha boca, e serás uma árvore

dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.

Ver no aro de fogo de uma entrega

tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus

será criar-te para luz dos meus pulsos e instante

do meu perpétuo instante.

Eu devo rasgar minha face para que a tua

se encha de um minuto sobrenatural,

devo murmurar cada coisa do mundo

até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso

jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim o instinto

seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha

inspirada, o mar, os centauros

do crepúsculo,

- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca

um do outro. Por isso é que

nos desfazemos no arco do verão, no pensamento

da brisa, no sorriso deserto, no peixe,

no cubo, no linho,

no mosto,

no amor mais impossível do que a vida."



Herberto Helder, O amor em visita